Já muito se escreveu sobre o relatório e contas da Benfica SAD referente ao exercício de 2019/2020. Vou aqui tentar não repetir o óbvio, que, por esse mesmo motivo, já foi diversas vezes referido por essa blogosfera fora … e não só.
Este é um texto essencialmente técnico que incide sobre a temática do relato financeiro. Vou, contudo, tentar apresentá-lo de forma compreensível para todos os leitores (incluindo para o presidente do nosso Benfica). Vou ainda tentar não me alongar muito no texto, pois sei (em grande medida por experiência própria) que textos longos perdem interesse.
Podemos fazer várias leituras do mais recente relatório e contas da Benfica SAD. A leitura que aqui partilho convosco incide sobre as verdades que não são ditas, mas que transparecem da informação financeira relatada… porque “the trouth is out there”.
Começo pelo seguinte parágrafo que se encontra na mensagem do presidente na página 7 do relatório e contas da Benfica SAD.
“Um caminho assente no respeito dos nossos compromissos, na credibilidade da nossa palavra ou na sustentabilidade do nosso negócio, tudo sinónimos de mais de uma década de desenvolvimento que conjuga o rigor, a paixão pelo futebol, a solidez financeira e a obtenção de resultados.”
Sr. Presidente, está a gozar com os sócios e adeptos do Benfica? Tudo o que vou falar neste texto é mencionado neste parágrafo… mas ao contrário!
1- Conjugação de solidez financeira com obtenção de resultados (presume-se que desportivos)
A conjugação das 2 coisas pressupõe que essas 2 coisas se verificam em simultâneo. Ou seja, a solidez financeira (aqui medida pelos capitais próprios) evidencia uma tendência crescente e o desempenho desportivo (aqui medido pela posição no ranking da UEFA) também evidencia uma tendência positiva. Ora o gráfico seguinte não deixa dúvidas quanto à magnitude da inverdade subjacente a esta afirmação do presidente do Benfica.

De facto, o capital próprio da SAD tem vindo a aumentar consistentemente desde 2013, mas também tem aumentado a posição do Benfica no ranking da UEFA (e aqui o aumento é negativo). Ou seja, ao contrário do que o atual presidente e a atual liderança do clube e da SAD têm tentado transmitir, a consolidação financeira da SAD tem sido feita à custa do sucesso desportivo do Benfica onde verdadeiramente interessa e onde o Benfica se tornou grande: na Europa! O melhor desempenho do Benfica em termos de ranking da UEFA ocorreu precisamente quando a solidez financeira foi mais afetada.
Senhor presidente, tenha a decência de assumir perante os sócios e adeptos do Benfica que não consegue conjugar a solidez financeira com o sucesso desportivo. Outros há que o conseguem fazer. Os sócios devem ter conhecimento disso e devem ter a possibilidade de dar a oportunidade aos que conseguem verdadeiramente conjugar o sucesso em ambas as vertentes... ou então, tenha a decência de assumir perante os sócios e adeptos do Benfica que, para si e para a atual liderança, o verdadeiro objetivo do futebol do Benfica não é o sucesso desportivo.
2- Sustentabilidade do negócio
Senhor presidente, aqui está mesmo a gozar connosco! Está a gozar tanto connosco, que isto já roça o sadismo.
Desde quando é sustentável um modelo de negócio em que os rendimentos operacionais (de direitos de TV, comerciais e de bilhética e afins) representam 81% dos gastos operacionais (essencialmente custos fixos)? Então os rendimentos da venda dos nossos produtos/serviços não chegam para cobrir os custos fixos da atividade e isto é um modelo sustentável? … e estamos a olhar para números que beneficiam do forte contributo da Liga dos Campeões, algo que, infelizmente, não vai acontecer na presente época.
Esperem… temos lucro! Isso é que interessa. O “bottom line” não mente! Afinal, parece que o negócio é sustentável. Mas como surgiu esse lucro? Esse lucro surgiu com a venda de passes de atletas, de onde resulta um contributo líquido de 125,7 milhões de euros para o resultado do exercício de 2019/2020. Então isso leva-nos a concluir que a sustentabilidade do modelo de negócio da SAD assenta na alienação dos seus melhores ativos.
Mas que raio de gestão é esta? Isto é um hino à gestão de curto prazo e revela uma profunda miopia estratégica por parte do presidente do Benfica e da atual liderança. Está-se a sacrificar o desempenho futuro à custa de resultados imediatos. Um claro exercício de destruição do valor dos acionistas da SAD e, sobretudo, do potencial de sucesso desportivo do futebol do Benfica.
Em primeiro lugar, todos sabemos que transações como a verificada no exercício de 2019/2020 (João Félix) não surgem todos os anos. Tivemos esta em 2019, houve mais algumas com ocorrência esporádica nos últimos anos … e não tivemos outra desta magnitude já na presente época, porque o nosso presidente não quis vender o passe do Vinicius por muitas dezenas de milhões de euros e, dessa forma garantir a competitividade desportiva do plantel … do Tottenham.
Em segundo lugar, quando delapidamos o nosso plantel com a venda do passe dos principais atletas, estamos a comprometer o sucesso desportivo e, dessa forma, a pôr em causa uma importante fonte de rendimentos (as receitas da Liga dos Campeões), como aliás já percebemos este ano. Por outro lado, sem os principais atletas, a qualidade do futebol praticado diminui, o que afasta o interesse dos adeptos do futebol em geral com consequências nefastas ao nível de outra fonte de rendimentos muito importante: patrocínios. Aliás, o insucesso desportivo referido atrás não se faz sentir unicamente ao nível das receitas associadas à participação nas competições da UEFA. Como é referido no primeiro parágrafo da página 28 do relatório e contas, ficar aquém dos objetivos desportivos acordados com os patrocinadores também resulta em menores rendimentos associados a patrocínios.
Em terceiro lugar, sem os principais atletas no plantel, com uma qualidade de jogo mais pobre e sem sucesso desportivo consentâneo com o que os sócios e adeptos do Benfica esperam e merecem, é de esperar menos público no estádio (quando tal for possível) e, consequentemente, também menos receitas de bilheteira e afins.
Em quarto lugar, com a saída do plantel dos principais atletas e com o consequente insucesso desportivo associado, a visibilidade da equipa e de outros atletas com potencial existentes no plantel diminui substancialmente, o que prejudica a própria fonte da alegada sustentabilidade do negócio: a venda de passes de atletas. Uma incoerência do próprio modelo de negócio subjacente à tão propalada consolidação financeira e desportiva… já de si cheia de incoerências.
Uma última nota sobre a sustentabilidade do negócio. Muito mais havia a dizer sobre as verdades escondidas no relatório e contas relacionadas com este tópico, mas, para não me alongar em demasia, quero apenas fazer referência à variação observada na rubrica de gastos com o pessoal. De acordo com a demonstração dos resultados, esta rubrica diminuiu de 88,3 milhões de euros no exercício de 2018/2019 para 85,6 milhões de euros no exercício de 2019/2020. Finalmente, boas notícias … ou não!
Vamos então perceber um pouco melhor o que se passa nesta rubrica e, para isso, vamos fazer uma breve incursão pela nota 19 (página 132 do relatório e contas). De acordo com a informação que se encontra nesta nota, afinal os salários até subiram (remunerações fixas). Houve um aumento de 13% na folha salarial da SAD (sendo que o número de atletas sob contrato até baixou significativamente). Ou seja, continuamos a engordar a estrutura e a cavalgar nesse aumento inexorável dos salários que se paga sem que isso se traduza em sucesso desportivo… mais uma ode à brilhante gestão do futebol do Benfica!
Mas se a folha salarial aumentou, porque motivo diminuíram os gastos com o pessoal? Essa diminuição deve-se essencialmente à redução nas remunerações variáveis. Uma redução de 9,5 milhões de euros que se percebe pelo facto de o futebol do Benfica ter falhado em toda a linha na época desportiva de 2019/2020. O que não se percebe muito bem é como ainda assim foram incorridos gastos com remunerações variáveis no montante de 7,3 milhões de euros. Certamente tem a ver com a conquista da supertaça ou com o brilhante segundo lugar alcançado na fortíssima liga portuguesa. Fomos os primeiros de entre todos os perdedores… É, mais uma vez, a apologia da mediocridade. É a falta de cultura de vitória que crassa no nosso clube e uma imagem pálida do Benfica que os nossos pais e avós deixaram e que, pelas vicissitudes da vida, acabou nas mãos desta liderança que não sente e não respeita a gloriosa herança do Benfica.
3- Rigor
Estou a ficar sem adjetivos para a vocação que o nosso presidente demonstra ter para essa tão nobre arte de “zombar” com os outros (neste caso sócios e adeptos do Benfica). Vamos ver alguns exemplos desse rigor (ou da falta dele) ao nível do relato financeiro da Benfica SAD.
Primeiro exemplo: No exercício de 2019/2020 a rubrica de gastos com fornecimentos e serviços externos ascendeu a 72,7 milhões de euros. Excede claramente o total agregado das receitas de bilheteira e com atividades comerciais. A composição desta rubrica é apresentada na nota 18, onde podemos constatar que os trabalhos especializados ascendem a 11,4 milhões de euros. Mas a que respeitam estes trabalhos especializados? A administração da SAD responde da seguinte forma na página 131 do relatório em contas:
A rubrica de trabalhos especializados inclui diversos fornecimentos e serviços prestados por terceiros, sendo de destacar os gastos com consultores e de assistência técnica.
Ficaram elucidados? Eu também não. Um esclarecimento lacónico que revela uma grande parcimónia nas palavras. Afinal, há que poupar em alguma coisa…
Na mesma nota e em relação à mesma rubrica, constata-se que os outros fornecimentos e serviços ascendem a 7,9 milhões de euros. “Outros” devia corresponder a um montante residual no contexto da rubrica em causa, mas não. É simplesmente o terceiro componente com mais peso nesta rubrica e sobre o mesmo nada é dito. Vê-se um claro aperfeiçoamento na arte de poupar em explicações sobre temas “complicados”.
Em suma, nada é dito sobre o que representam 19,3 milhões de euros de gastos com fornecimentos e serviços externos. Não sou eu que estou a ser demasiado exigente com as explicações que a administração devia dar no relatório e contas. São as normas internacionais de relato financeiro que especificamente o exigem (alínea c) do parágrafo 112 da IAS 1). Normas estas que a administração da SAD diz, no primeiro parágrafo da nota 2.2 (página 95 do relatório e contas), ter seguido. Ninguém explica, assim, como foi gasto este dinheiro, o qual daria, por exemplo, para pagar o salário ao Cavani durante 2 épocas.
Segundo exemplo: Na página 40 do relatório e contas é dito que a dívida líquida (empréstimos bancários acrescidos dos empréstimos obrigacionistas e deduzidos de caixa e equivalentes) diminuiu quase 30%. Parece ser um bom indicador. Mas como se explica o aumento dos gastos financeiros de 15,6 milhões de euros para 16,8 milhões? Não era suposto pagarmos menos juros quando diminui a dívida remunerada? Este aparente paradoxo não é explicado no relatório e contas. Aliás, na página 126 do relatório e contas é referido que a taxa de juro média dos empréstimos no exercício de 2019/2020 foi 3,86%. Como se chega e esta taxa e como se relaciona a mesma com os gastos financeiros indicados na demonstração dos resultados? Ficamos sem resposta para estas dúvidas legítimas. Mais, esta divulgação da taxa média de juro está incompleta, pois devia incluir o comparativo do ano anterior, conforme requerido pelo parágrafo 38 da IAS 1 que a administração afirma ter adotado da preparação das demonstrações financeiras.
Este aumento dos gastos financeiros pode ter várias explicações. Há, contudo, pelo menos uma que me preocupa bastante. Tem a ver com o desconto das receitas da Nós. Em primeiro lugar, este desconto das receitas futuras da Nós é um empréstimo obtido (garantido com os créditos sobre a Nós). Como tal, devia, por respeito ao dever de transparência que a administração da SAD tem (para com os sócios, adeptos, investidores, regulador, …) e atendendo à caraterística qualitativa da informação financeira útil da representação fidedigna, prevista na estrutura concetual das normas internacionais de relato financeiro que a administração diz adotar, ter sido apresentado como um empréstimo obtido e não na rubrica de outros passivos. “Outros” tem sempre uma conotação de menor importância e, para além disso, esta classificação faz com que este financiamento obtido não seja sujeito aos requisitos de informação que se aplicam à rubrica de empréstimos obtidos. Não é, assim, dada qualquer informação sobre as condições deste financiamento, incluindo sobre taxa de juro do mesmo. Não é, desta forma, possível confirmar se este financiamento tem associada uma taxa de juro tão elevada, que tenha contribuído de forma decisiva para o aumento observado nos gastos financeiros.
Terceiro exemplo: Na página 147 do relatório e contas é feita referência aos processos judiciais que envolvem a SAD e os seus representantes. Mais uma vez, a arte da parcimónia nas explicações no seu melhor! Explicações lacónicas sobre os processos judiciais que envolvem a SAD, que não permitem perceber, entre outros, qual a verdadeira natureza dos mesmos e quais os efeitos financeiros associados, divulgação requerida pelo parágrafo 86 da IAS 37 (norma que a administração diz ter adotado). Este é um assunto sempre delicado, mas os sócios, adeptos e interessados em geral têm o direito de saber quais as consequências financeiras e desportivas que a SAD enfrenta decorrentes destes processos… mas neste particular, o tão propalado rigor não dá para mais.
Quarto exemplo: No último parágrafo da página 97 do relatório e contas (nota 2.4) é referido que os prémios de assinatura pagos aos jogadores são considerados como parte integrante do custo de aquisição do correspondente passe, o qual é classificado como um ativo intangível a amortizar durante o período do contrato. Ora, este tratamento não se afigura como estando correto, uma vez que o pagamento é efetuado ao atleta. Uma vez que o atleta tem um vínculo laboral com a SAD, tais pagamentos devem ser classificados como gastos com o pessoal (são em substância salários). Este entendimento é preconizado também na página 6 da publicação da PwC “Accounting for Typical Transactions in the Football Industry”, de outubro de 2018. Curiosamente, a PwC é quem audita as demonstrações financeiras da SAD. Alguém anda distraído…
Quinto exemplo: No primeiro parágrafo da página 104 do relatório e contas é referido o seguinte: “o rédito corresponde ao justo valor do montante recebido ou a receber relativo a serviços prestados”. Na página anterior é ainda referido que o rédito é reconhecido de acordo com as disposições da norma IFRS 15. Ora, de acordo com o parágrafo 46 desta norma, o rédito corresponde ao preço da transação, o qual consiste na contrapartida a que a entidade tem direito ao transferir o controlo sobre os bens ou serviços para o cliente (parágrafo 47 da mesma norma). Ou seja, a base de medição do rédito (componente tão importante do desempenho) referida pela administração no relatório e contas não está de acordo com a norma que a mesma administração diz ter aplicado. Mais um exemplo do rigor a que a atual liderança do Benfica nos tem habituado.
Existem mais verdades “ocultas” no relatório e contas da Benfica SAD que ficam para uma próxima ocasião. Urge debater o tema da qualidade do relato financeiro, uma vez que a grandeza de uma instituição também se mede pela transparência da sua comunicação, muito em particular do seu relato financeiro… e a transparência é um dos pilares em que se alicerça o nosso sonho de transformarmos o BENFICA NO MAIOR E MELHOR CLUBE DO MUNDO.