A principal razão pela qual não me revejo na atual liderança do Benfica e da SAD e no respetivo modelo de gestão prende-se com a ausência de paixão e com a indiferença que revela pelos valores básicos em que se alicerça o Benfica. São precisamente estes aspetos – paixão e os valores do Benfica – as razões da minha filiação visceral ao Benfica. Por outras palavras, são os agentes patogénicos desta doença incurável que é o meu Benfiquismo.
Quando falamos do Benfica, falamos de desporto e, para muitos, essencialmente de futebol.
Mas o que é o desporto e, em particular, o futebol sem a paixão? Sem a paixão, o futebol resume-se a um negócio que, visto desta forma, apenas interessa a alguns (muito poucos).
A paixão é o condimento do desporto e do futebol em particular. É o que move os adeptos, é o que os leva a sonhar, o que os leva a exultar com os sucessos e também o que os conduz a profundas angústias. Sem esta componente o futebol transforma-se num espetáculo (às vezes nem isso) a que se assiste com desprendimento. Ou seja, transforma-se na expressão comercial de um negócio onde alguns (muito poucos) lucram.
É precisamente nesta versão de futebol, descolorida e desprovida de paixão, que a atual liderança está a transformar o futebol do Benfica. O Seixal, uma das principais bandeiras da atual liderança, funciona como uma “fábrica” de atletas para venda e não como uma “fábrica” de talentos para reforço da capacidade competitiva da equipa principal.
A equipa B funciona como uma secção de “acabamento” para os jovens que ainda não estão em condições para serem colocados no mercado e não como uma antecâmara da equipa principal. A equipa sub-23 funciona como … bem, não se percebe na verdade para que serve esta equipa.
Quando os sócios e adeptos do Benfica começam, legitimamente, a sonhar com a construção de uma grande equipa, composta por talentos “made in Seixal” e consolidada com a qualidade e a experiência de outros atletas contratados, surge o mercado de transferências.
Com os argumentos de que o Benfica não pode competir com os salários pagos pelos “tubarões” do futebol mundial, de que não é justo “cortar as pernas” aos miúdos e de que os montantes recebidos são indispensáveis para o reforço competitivo da equipa, os atletas mais promissores e com mais qualidade são imediatamente vendidos… e neste momento, o tal legítimo sonho dos Benfiquistas, que, inevitavelmente, desemboca na almejada conquista da Liga dos Campeões da UEFA, sofre mais um rude golpe.
É assim que a atual liderança gere o futebol do Benfica: sem paixão, sem consideração pelas aspirações dos Benfiquistas e como um negócio que beneficia alguns poucos e prejudica o sonho de muitos… e o pior é que a justificação para este modelo de gestão assenta num conjunto de falácias!
Falácia 1:
Não é verdade que o Benfica não seja capaz de pagar a miúdos de 19 ou 20 anos o que eles vão receber nos Manchesters, nos Bayerns e nos Barcelonas desta vida.
Se a SAD pode renovar contratos com atletas em final de carreira ou que passam metade da época com lesões que os impedem de competir com salários de 6 ou 7 milhões de euros anuais…
se a SAD pode pagar salários desta magnitude a atletas contratados que praticamente não competem pela equipa principal…
se a SAD pode gastar dezenas de milhões de euros por ano com a contratação de serviços cuja natureza e utilidade ninguém consegue perceber…
Então haverá certamente margem para pagar salários consentâneos com o que a elite do futebol mundial paga a atletas com a qualidade e o potencial dos talentos “made in Seixal”.
Falácia 2:
Não é verdade que não vender atletas com 19 ou 20 anos para um “tubarão” do futebol mundial seja cortar as pernas aos mesmos.
Há vários exemplos de atletas promissores cuja evolução estagnou quando integraram os plantéis destes “tubarões”.
Por outro lado, um clube como o Benfica tem, obrigatoriamente, que competir consistentemente ao mais alto nível na Liga dos Campeões da UEFA. Ou seja, tem de ser capaz de proporcionar a tais atletas condições competitivas e projetos desportivos aliciantes que lhes permitam continuar a sua evolução… a não ser que o Benfica Europeu apregoado pela atual liderança seja um slogan apenas para enganar os Benfiquistas.
Falácia 3:
Não é verdade que o reforço da capacidade competitiva do futebol do Benfica e que a sustentabilidade do modelo dependam da venda dos principais talentos.
Esta é a principal falácia da argumentação utilizada pela atual direção e aquela à qual irei dar mais atenção no presente texto.
Em primeiro lugar, é uma ilusão assumir que o Benfica ou a SAD vão receber a totalidade do preço de venda dos atletas. Entre comissões generosas e partes dos passes que pertencem a terceiros, quanto verdadeiramente sobra para a SAD?
Neste particular, recordo que no relatório e contas semestral mais recente da SAD é referido, nas notas 6 e 22.2 do anexo, que existem partes de passes dos atletas detidas por terceiros e que, para além disso, foram assumidos compromissos com terceiros com vista à partilha de receitas resultantes da venda futura de passes dos atletas.
Para além de sabermos que o passe de Cervi apenas é detido em 90%, nenhuma informação adicional sobre este tema sensível e potencialmente muito relevante é dada.
Vamos hipoteticamente (porque não sabemos) assumir que existem compromissos desta natureza associados aos passes de alguns dos jovens talentos “made in Seixal”.
Se tal se verificar, não será relevante divulgar esta informação? Para além de tal omissão contrariar o disposto numa norma de relato financeiro (IAS 1:122c)), a qual obriga à divulgação de toda a informação relevante para o entendimento da situação financeira da entidade e do seu desempenho, ainda constitui uma evidência clara da desconsideração com que a atual liderança do Benfica e da SAD trata o direito legítimo dos acionistas da SAD, dos sócios do Benfica e dos adeptos em geral a serem adequadamente informados. Todos nos lembramos do que aconteceu com o Ederson…
Adicionalmente, de acordo com os relatórios e contas da SAD, no período compreendido entre julho de 2008 e dezembro de 2018, as transações de passes de atletas e afins geraram receitas de, aproximadamente, 725 milhões de euros (influxos de caixa).
Com tanto dinheiro a entrar, seria perfeitamente expectável que a SAD tivesse conseguido construir um plantel de luxo e tivesse, pelo menos a partir de certa altura, conseguido reter talentos. Isso nunca aconteceu!
Desde logo porque 88% destas receitas evaporaram-se em contratações de camiões de atletas, muitos deles sem quaisquer condições para integrar o plantel principal. Ou seja, o que verdadeiramente interessava era colocar o capital a circular no contexto de uma estratégia pura de trading que, sendo muito lucrativa para os que beneficiam das chorudas comissões do costume, em nada contribui para o reforço da capacidade competitiva do plantel do Benfica.
Também não aconteceu porque havia que investir no campeonato do betão. Construir mais infraestruturas no Seixal para aumentar a “linha de produção” de atletas para venda (e para gerar mais umas comissões).
Também não aconteceu porque foram esbanjadas umas dezenas de milhões de euros na aquisição de serviços cujo benefício não é de todo visível e na contratação de dezenas de atletas e colaboradores cujo contributo para o sucesso desportivo do futebol do Benfica é, na melhor das hipóteses, nulo.
Tivesse a atual liderança seguido uma política de contratações orientada para o sucesso desportivo, refreado o seu ímpeto na área da construção civil e sido mais comedida na contratação de serviços e de colaboradores e neste momento estaríamos certamente a ver a Liga dos Campeões no estádio e não pela TV.
Vamos agora fazer um exercício simples de tentar projetar o resultado líquido da SAD no exercício de 2019/2020 a partir das contas semestrais de dezembro de 2018, sem a venda dos principais talentos do plantel (ou dos atletas mais talentosos).
Para o efeito consideremos apenas as seguintes modificações face aos valores atuais (ignorando a alienação da Benfica Estádio e da Benfica TV para a Benfica SGPS):
1- Benfica faz 12 pontos na fase de grupos da Liga dos Campeões e é eliminado nos oitavos de final, obtendo um total de receitas com TV e com prémios desportivos no exercício de 110,7 milhões de euros.
2- As receitas comerciais e de bilheteira registam um aumento perfeitamente razoável de 2,8% face ao exercício de 2018 e ascendem a 61,9 milhões de euros.
3- Os fornecimentos e serviços externos registam um aumento de 3% face ao exercício de 2018 (deixamos de fora apenas o crescimento acentuado verificado no primeiro semestre de 2018/19) e ascendem a 38,1 milhões de euros.
4- Poupanças de 18 milhões de euros com a alienação de salários de atletas que não são estratégicos (por exemplo, Ferreyra, Sálvio e outro de entre várias alternativas existentes).
5- Poupanças de 3 milhões de euros com a renegociação salarial de atletas na curva descendente das suas carreiras que ficarem no plantel.
6- Aumento de 18 milhões de euros com os salários dos atletas estratégicos que interessa reter.
7- Diminuição dos prémios atribuídos aos atletas pela presença na fase de grupos da Liga dos Campeões e aumento dos prémios atribuídos pela passagem aos oitavos de final da mesma competição, cujo efeito líquido deverá ser neutro.
8- Poupança de 3 milhões de euros nos gastos com juros suportados em função da redução do passivo remunerado em curso.
9- Mais-valias de 20 milhões de euros com a alienação de atletas não estratégicos (na curva descendente da carreira e ainda com mercado, atletas emprestados e atletas da formação sem espaço no plantel principal).
O detalhe dos cálculos efetuados pode ser consultado nas figuras.
Com este exercício conseguimos chegar a um resultado líquido nulo que não viola o requisito do break-even do financial fair-play da UEFA e ainda conseguimos libertar fundos de 39,2 milhões de euros que permitem o reforço cirúrgico do plantel.
Demonstra-se, com este exercício, que a retenção de talentos e o reforço da capacidade competitiva do plantel são perfeitamente compatíveis com um cenário de sustentabilidade económica da SAD, desmontando por completo a falácia 3 atrás referida.
É, pois, precisamente a retenção de talentos a chave para o salto competitivo que o Benfica necessita para entrar no ciclo virtuoso que o irá colocar na elite do futebol mundial e no caminho certo para ser tornar no MAIOR E MELHOR CLUBE DO MUNDO.
É precisamente desta solução que a atual liderança do Benfica nos priva quando, alicerçada nas falácias atrás referidas, envereda pela venda frenética de tudo o que mexe.